Era 1964, estavam todos na sede da
UNE na Praia do Flamengo comemorando um novo ano, cheio de expectativas e
muitos planos para o crescimento da entidade. Esperavam que fosse um momento
decisivo para a população, há tempos pressionavam o governo de João Goulart por
reformas sociais e melhorias para a classe trabalhadora do Brasil, havia uma
necessidade de progresso social no país. Dois anos antes, em 1962, artistas e
estudantes fundaram o Centro Popular de Cultura da UNE, que é responsável por
produzir arte popular e engajar o artista na política.
Alfredo, Francisco, José Frejat e
Ana Roberta acordaram com o nascer do sol forte, levantaram cheios de energia,
afinal já era 1964 e prometia muitas novidades no Rio de Janeiro e no Brasil.
Saíram para dar uma volta na orla da praia, eram amigos de longa data e sempre
estiveram juntos nas lutas do movimento estudantil, e, por isso, sempre
conversavam e debatiam ideias que estavam sendo construídas, foi assim que
Frejat quebrou o silêncio:
-
Putz, cês já pensaram o quanto está sendo foda!? o CPC tá incrível, a nossa
sede tá sendo reformada, estamos construindo um teatro novo e moderno, e só
assim conseguiremos fazer apresentações teatrais do cacete!
-
Puta mano, esse ano vai ser do caralho, a gente vai rodar o país inteiro com
arte popular e revolucionária, construir um movimento cultural dentro das
universidades e fortalecer o movimento estudantil, digaí! – Disse Alfredo.
-
Ei gente, vocês tão ligado que esse ano a gente precisa fazer grandes
mobilizações, a gente fica só lá com o pessoal da UFRJ, também precisamos
trazer trabalhadores e trabalhadoras pra reivindicar direitos que são do
interesse de todos. - Complementou Ana Roberta.
Francisco permaneceu em silêncio,
sabe-se lá o que ele estava pensando, era sempre mais quieto e não tão
comunicativo.
Era o mês de janeiro e os
estudantes da UNE e do CPC começavam a montar o calendário para as
apresentações teatrais no Brasil, feiras de livros e apresentações de artistas.
Logo, no dia 31 de março, iriam inaugurar o novo teatro com a peça Os
Azeredos mais os Benevides, de
Oduvaldo Viana Filho. Tudo se
inclinava para uma guinada cultural no Rio de janeiro.
Fevereiro
teve um carnaval muito agitado, muitos blocos carnavalescos saíram às ruas com
as famosas marchinhas de carnaval, outros foram prestigiar a vitória da escola
de samba Portela nos desfiles que eram na avenida Presidente Vargas. Os
estudantes, claro, não perderam esse evento festivo, foram todos brincar o
carnaval da melhor forma possível.
Apesar
do que se esperava, março foi um mês com clima político muito tenso, a
influência dos Estados Unidos na América Latina para frear uma aproximação da
URSS gerou uma série de ditaduras militares nos mais diferentes países da
América do Sul, e isso começou a preocupar o governo de João Goulart. Em 13 de
março, 200 mil pessoas se reuniram na Central do Brasil para ouvir o discurso
do presidente, que foi transmitido pela TV e pelo rádio, nele Jango falou sobre
a importância da democracia no Brasil e as tentativas de sabotagem para que aquele
evento acontecesse, fortaleceu em seu discurso a reforma agrária, as melhorias que
deveriam ser feitas para a classe trabalhadora e as políticas estudantis.
Entretanto, em 19 de março, foi formada a Marcha da família com Deus pela
liberdade, que saiu em diversas cidades do país contra o governo e contra a
ameaça comunista.
Alfredo,
apreensivo, acreditava que o clima poderia ficar muito pior. Muitas reuniões de
organização foram feitas na UNE, Francisco mobilizou o CPC, enquanto Ana
Roberta mobilizava as bases dentro das universidades e Frejat terminava os
preparativos para apresentar a peça no dia 31 de março. Todos acreditavam que
poderiam resistir à essas marchas conservadoras que punha em risco os avanços
sociais e as medidas que estavam sendo feitas no governo, e por isso
fortaleceram cada vez mais a UNE e as setoriais nas capitais.
Chega o
dia da inauguração do teatro e a apresentação da peça.
- Gente, é hoje, vamos inaugurar o
teatro do CPC, apresentar nossa primeira peça aqui e depois temos que sair Brasil
a dentro levando cultura e arte para a população! – Exclama Frejat.
- Fica tranquilo boy, todo mundo da
universidade vai colar aqui junto e a gente vai fazer um espetáculo massa! Mais
do que nunca precisamos combater projetos conservadores que não priorizam a
nossa cultura! – Diz Ana Roberta
- Boy, estamos juntos nessa, nosso
CPC tá incrível e iremos levar cultura e arte pros interiores. Cês tão ligado
nisso? Vai ser foda. – Francisco reforça.
É 31 de março, a peça teatral foi
um sucesso, o teatro estava lotado e os dirigentes da UNE e do CPC estavam mais
que empolgados. Mesmo com toda a tensão social e política no país, grande parte
acreditava que, logo, dias melhores iriam vir.
Cansados, alguns dormiram no prédio
da UNE e foram despertados logo cedo, parecia ser um dia estranho, chuvoso, uma
sensação de inquietude tomava os estudantes da entidade, era 1 de abril. Não
tardou, o exército saiu às ruas de todo o país para tomar o poder do presidente
João Goulart e implantar o que seria a Ditadura Militar brasileira. Rebeliões
começaram a ser feitas, o Palácio Guanabara é invadido e o presidente é
deposto, os governadores também, iniciando um clima político que o país não via
há muitos anos. Os estudantes rapidamente se organizam e tentam resistir a um
episódio inacreditável. As repressões começam, os universitários estão na
Cinelândia, no Centro do Rio, onde as tropas estavam concentradas, mas há uma
nova ordem e a direção da tropa é redirecionada.
Ana Roberta morava próximo à sede
da UNE e foi se juntar aos demais companheiros que ali se encontravam e que
haviam colocado uma grande faixa preta simbolizando o luto por aquele
acontecimento histórico. Era uma noite que ameaçava chover e Ana Roberta vinha apressada
com um guarda-chuva no braço esquerdo, desceu a rua e dobrou a esquina, ela foi
diminuindo o passo, parou e não acreditava no que estava vendo, os militares
estavam ateando fogo à sede da União Nacional dos Estudantes, queimando todos
os móveis, documentos da entidades e o teatro moderno inaugurado um dia antes
pelo Centro Popular de Cultura da UNE. Ela sentou-se na calçada, ainda úmida da
chuva da tarde, e pôs-se a chorar ao lado de seus companheiros.
*As
cenas podem não condizer com a realidade dos fatos.