quarta-feira, 12 de maio de 2021

 A rotina invisível dos trabalhadores no campo

Jornadas extensas de trabalho, ausência de direitos trabalhistas e falta de políticas públicas para o campo são fatores determinantes na precarização das populações que vivem em áreas rurais
Imagem: Grupo Rodoxisto

Eram quatro da madrugada quando acordei, mas o dia já havia começado para Almir, 55, e Antônio, 53, irmãos que dividem o trabalho no campo como pecuaristas. Moradores do sítio Boa Vista - localizado no município de Serra Negra do Norte, no estado do Rio Grande do Norte - acordam sempre às 1:30h da madrugada para se prepararem para o trabalho, ou a luta do sítio, que é como eles costumam chamar. Entre xícaras de café e conversas do cotidiano, os irmãos seguem na fria madrugada do sertão para ordenhar o rebanho bovino da família, que ficou sob os cuidados deles desde que o pai faleceu em 2011.

Saio de bicicleta em busca do curral, espero encontrar algum momento para fotografá-los, mas a timidez e o meu despreparo com a fotografia fazem com que  a gente ria juntos. O leite segue do sítio para a cidade de São Bento - no estado da Paraíba, que fica a onze quilômetros da propriedade - e é vendido a um leiteiro da cidade. Ao longo do dia, além de mais uma sessão na ordenha, desta vez no período da tarde, os irmãos se dividem entre plantio de capim, alimentação dos animais, conserto de cercas e o pastoreio do rebanho.

Os irmãos resumem o trabalho como cansativo e desgastante, "o trabalho é de domingo a domingo. Essa luta não tem férias, nem domingo e nem dia santo", afirma Antônio. Ele ainda diz que a jornada de trabalho é incerta, "não tem hora de dormir, nem de comer, nem de trabalho, não tem hora marcada". Esses fatores contribuem para períodos longos de trabalho que não são evidentes ao passar em um hortifrúti de um supermercado ou em uma feira livre de bairro, ou seja, para que frutas, legumes e leite cheguem à cidade, há incontáveis horas de trabalho expressas naqueles produtos. 

A falta de regulamentação e direitos trabalhistas no campo reside na aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma das mais importantes conquistas da classe trabalhadora brasileira no século XX. Aprovada em 1943, a CLT beneficiou apenas os trabalhadores urbanos, parte de um acordo entre Getúlio Vargas e os grandes latifundiários, que agiram para manter o regime de precarização e exploração do campesinato. Apesar disso, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7°, reserva uma série de direitos aos trabalhadores rurais do país.

Almir, 55, morador e um dos proprietários do sítio Boa Vista, no município de Serra Negra do Norte-RN.

As atividades de lazer também são escassas, distante das cidades e dos grandes centros, as comunidades rurais carecem de aparelhos culturais, como teatro, cinema e bibliotecas, contam ainda com boa parte da população não-escolarizada, tendo em vista o acesso negado a esse direito fundamental nas regiões mais remotas do país. Almir diz que não tem tempo para o lazer, "durmo pouco e ainda acordo enfadado", já Antônio comenta: "me deito um pouco, assisto TV, ouço música no rádio, mas o tempo é pouco", acrescenta ainda que "antes da pandemia tinha vaquejada, forró, hoje a festa é ir à feira da cidade". 

Antônio, 53, na ordenha manual, comenta que seu trabalho "não é bom não, mas a gente finda achando bom, que é o que a gente sabe fazer".

Os irmãos comentam ainda que a pandemia tem prejudicado a subsistência e os gastos financeiros com o rebanho. Enquanto alimentos essenciais, como arroz, feijão e óleo de cozinha, estão em alta, os lucros pouco tem contribuído para enfrentar a subida dos preços, como avalia Antônio "o que você ganha hoje, ganhava há cinco anos atrás, mas o preço das coisas triplicaram."

Outro componente importante do campo é o trabalho das mulheres, dentro ou fora de casa, que embora passe despercebido, é essencial para a estrutura familiar rural, porque são elas que majoritariamente cuidam do lar, da comida, dos filhos e do marido. Muitas complementam as rendas de casa através de programas governamentais, seja o Bolsa Família, ou o Auxílio Emergencial, que foi vetado pelo governo de Jair Bolsonaro aos trabalhadores rurais em agosto de 2020, impedindo que inúmeras pessoas tivessem acesso ao programa.

A precarização da vida na zona rural gerou um processo, que embora seja hoje denominado de "Gig Economy" (Economia dos Bicos), esteve sempre presente no cotidiano das famílias. É o que me contou a Cremilda, 40, que além de dona de casa, é pecuarista e trabalha com redes de dormir. Produzindo por peça, se desdobra em dois trabalhos diferentes para auxiliar na remuneração da casa, assim como Maria de Lurdes, 37, que já trabalhou em empregos fixos, mas hoje depende de bicos no setor têxtil, trabalhando em casa, ela conta que tem um problema na coluna, o que a impede de fazer trabalhos pesados, e embora tenha passado por empresas na cidade, nunca recebeu auxílio médico para tratamento.

Apesar da realidade pouco animadora, Olindina, 82, relata que há poucas décadas atrás "não existia nada, nem energia, nem rádio, só fazia mesmo trabalhar, conversava desbulhando feijão". Embora afirme que hoje as pessoas trabalhem muito menos, por causa da mecanização de parte do trabalho agrícola, ainda é expressiva a demanda existente e a centralidade do trabalho no cotidiano das pessoas, que consome quase todo o tempo disponível dos moradores.
Cremilda, 40, além de dona de casa, é pecuarista e trabalha com redes de dormir em sua casa.

Embora a vida no campo divida opiniões, as condições de vida e trabalho são determinantes na qualidade de vida do campesinato. Como aponta Valdecir, 39, "não tenho nem planos pro futuro com esse tipo de trabalho", a perda de sentido e a dificuldade em se estabilizar em empregos que dependem das condições climáticas geram um desconforto e poda a capacidade de fazer planos para o futuro. A insatisfação com a ausência de políticas públicas e subsídios para o campesinato é evidente, já que a falta de apoio governamental gera descontentamento e êxodo para a cidade em busca de empregos que paguem melhor e possibilitem estabilidade.

Maria de Lurdes, 37, conta que apesar de utilizar o rádio e aproveitar momentos de descanso para dormir, sente falta do celular para se comunicar com amigos e família, já que na casa onde mora não há internet.


Quantificar a jornada do trabalho rural é tão difícil quanto quantificar o trabalho doméstico, majoritariamente exercido pelas mulheres. Como grande parte dos trabalhadores residem na região onde trabalham, a extensão da jornada é comum e se torna a regra, somando-se a isso a ausência de atividades de lazer disponíveis e o cansaço gerado pela atividade do trabalho. A rotina invisível dos trabalhadores e trabalhadoras do campo não é recente, tampouco foi solucionada, mas exige medidas capazes de subsidiar e possibilitar um trabalho que respeite o campesinato.

Olindina, 82, hoje aposentada, conta que quando jovem quase não havia idosos aposentados na região. Hoje, o medo de não conseguir a aposentadoria rural volta a preocupar os trabalhadores do campo.

Procurado, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Serra Negra do Norte, Orlando Fernandes, afirma que "o governo federal a cada ano só diminui os valores voltados para investimentos na agricultura familiar, além de  fazer pressão pra os funcionários do INSS serem desumanos na aprovação dos benefícios previdenciários rurais", além disso "são afetados programas sociais como garantia safra e programa nacional de crédito fundiário."

Sobre as atividades de lazer, Orlando afirma que o sindicato não possui parcerias com o município de Serra Negra do Norte, as atividades como distribuição de materiais esportivos ou patrocínio de atividades culturais é de iniciativa da entidade. Para o ano de 2021, ele afirma que pretende "aprimorar a parceria com as associações, visando maior desenvolvimento das comunidades, e já estamos trabalhando em uma parceria para distribuição de cestas básicas às famílias da zona rural".




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