domingo, 9 de junho de 2019

Eles venceram


Era 1964, estavam todos na sede da UNE na Praia do Flamengo comemorando um novo ano, cheio de expectativas e muitos planos para o crescimento da entidade. Esperavam que fosse um momento decisivo para a população, há tempos pressionavam o governo de João Goulart por reformas sociais e melhorias para a classe trabalhadora do Brasil, havia uma necessidade de progresso social no país. Dois anos antes, em 1962, artistas e estudantes fundaram o Centro Popular de Cultura da UNE, que é responsável por produzir arte popular e engajar o artista na política.
Alfredo, Francisco, José Frejat e Ana Roberta acordaram com o nascer do sol forte, levantaram cheios de energia, afinal já era 1964 e prometia muitas novidades no Rio de Janeiro e no Brasil. Saíram para dar uma volta na orla da praia, eram amigos de longa data e sempre estiveram juntos nas lutas do movimento estudantil, e, por isso, sempre conversavam e debatiam ideias que estavam sendo construídas, foi assim que Frejat quebrou o silêncio:
- Putz, cês já pensaram o quanto está sendo foda!? o CPC tá incrível, a nossa sede tá sendo reformada, estamos construindo um teatro novo e moderno, e só assim conseguiremos fazer apresentações teatrais do cacete!
- Puta mano, esse ano vai ser do caralho, a gente vai rodar o país inteiro com arte popular e revolucionária, construir um movimento cultural dentro das universidades e fortalecer o movimento estudantil, digaí! – Disse Alfredo.
- Ei gente, vocês tão ligado que esse ano a gente precisa fazer grandes mobilizações, a gente fica só lá com o pessoal da UFRJ, também precisamos trazer trabalhadores e trabalhadoras pra reivindicar direitos que são do interesse de todos. - Complementou Ana Roberta.
Francisco permaneceu em silêncio, sabe-se lá o que ele estava pensando, era sempre mais quieto e não tão comunicativo.
Era o mês de janeiro e os estudantes da UNE e do CPC começavam a montar o calendário para as apresentações teatrais no Brasil, feiras de livros e apresentações de artistas. Logo, no dia 31 de março, iriam inaugurar o novo teatro com a peça Os Azeredos mais os Benevides, de Oduvaldo Viana Filho. Tudo se inclinava para uma guinada cultural no Rio de janeiro.
Fevereiro teve um carnaval muito agitado, muitos blocos carnavalescos saíram às ruas com as famosas marchinhas de carnaval, outros foram prestigiar a vitória da escola de samba Portela nos desfiles que eram na avenida Presidente Vargas. Os estudantes, claro, não perderam esse evento festivo, foram todos brincar o carnaval da melhor forma possível.
Apesar do que se esperava, março foi um mês com clima político muito tenso, a influência dos Estados Unidos na América Latina para frear uma aproximação da URSS gerou uma série de ditaduras militares nos mais diferentes países da América do Sul, e isso começou a preocupar o governo de João Goulart. Em 13 de março, 200 mil pessoas se reuniram na Central do Brasil para ouvir o discurso do presidente, que foi transmitido pela TV e pelo rádio, nele Jango falou sobre a importância da democracia no Brasil e as tentativas de sabotagem para que aquele evento acontecesse, fortaleceu em seu discurso a reforma agrária, as melhorias que deveriam ser feitas para a classe trabalhadora e as políticas estudantis. Entretanto, em 19 de março, foi formada a Marcha da família com Deus pela liberdade, que saiu em diversas cidades do país contra o governo e contra a ameaça comunista.
Alfredo, apreensivo, acreditava que o clima poderia ficar muito pior. Muitas reuniões de organização foram feitas na UNE, Francisco mobilizou o CPC, enquanto Ana Roberta mobilizava as bases dentro das universidades e Frejat terminava os preparativos para apresentar a peça no dia 31 de março. Todos acreditavam que poderiam resistir à essas marchas conservadoras que punha em risco os avanços sociais e as medidas que estavam sendo feitas no governo, e por isso fortaleceram cada vez mais a UNE e as setoriais nas capitais.
Chega o dia da inauguração do teatro e a apresentação da peça.
- Gente, é hoje, vamos inaugurar o teatro do CPC, apresentar nossa primeira peça aqui e depois temos que sair Brasil a dentro levando cultura e arte para a população! – Exclama Frejat.
- Fica tranquilo boy, todo mundo da universidade vai colar aqui junto e a gente vai fazer um espetáculo massa! Mais do que nunca precisamos combater projetos conservadores que não priorizam a nossa cultura! – Diz Ana Roberta
- Boy, estamos juntos nessa, nosso CPC tá incrível e iremos levar cultura e arte pros interiores. Cês tão ligado nisso? Vai ser foda. – Francisco reforça.
É 31 de março, a peça teatral foi um sucesso, o teatro estava lotado e os dirigentes da UNE e do CPC estavam mais que empolgados. Mesmo com toda a tensão social e política no país, grande parte acreditava que, logo, dias melhores iriam vir.
Cansados, alguns dormiram no prédio da UNE e foram despertados logo cedo, parecia ser um dia estranho, chuvoso, uma sensação de inquietude tomava os estudantes da entidade, era 1 de abril. Não tardou, o exército saiu às ruas de todo o país para tomar o poder do presidente João Goulart e implantar o que seria a Ditadura Militar brasileira. Rebeliões começaram a ser feitas, o Palácio Guanabara é invadido e o presidente é deposto, os governadores também, iniciando um clima político que o país não via há muitos anos. Os estudantes rapidamente se organizam e tentam resistir a um episódio inacreditável. As repressões começam, os universitários estão na Cinelândia, no Centro do Rio, onde as tropas estavam concentradas, mas há uma nova ordem e a direção da tropa é redirecionada.
Ana Roberta morava próximo à sede da UNE e foi se juntar aos demais companheiros que ali se encontravam e que haviam colocado uma grande faixa preta simbolizando o luto por aquele acontecimento histórico. Era uma noite que ameaçava chover e Ana Roberta vinha apressada com um guarda-chuva no braço esquerdo, desceu a rua e dobrou a esquina, ela foi diminuindo o passo, parou e não acreditava no que estava vendo, os militares estavam ateando fogo à sede da União Nacional dos Estudantes, queimando todos os móveis, documentos da entidades e o teatro moderno inaugurado um dia antes pelo Centro Popular de Cultura da UNE. Ela sentou-se na calçada, ainda úmida da chuva da tarde, e pôs-se a chorar ao lado de seus companheiros.

*As cenas podem não condizer com a realidade dos fatos.

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